Doença cardíaca e dependência química: quais são os efeitos da cocaína no coração?

O uso de cocaína é um fenômeno cada vez mais difundido em todo o mundo. Os benefícios aparentes e temporários oferecidos por esta substância, no entanto, muitas vezes levam a condições de dependência e abuso com consequências clínicas muito graves, às vezes irreversíveis.

QUÃO DISPONIBILIZADA É A COCAÍNA?

O UNODC (a agência da ONU que monitora o uso de drogas em todo o mundo) relata que o uso de cocaína tem aumentado constantemente nos últimos anos em alguns países do mundo, especialmente na América do Norte e na Europa Ocidental.

O Relatório Europeu sobre Drogas de 2018 concorda que a cocaína está cada vez mais presente nos mercados europeus, conforme documentado também por análises de águas residuais em algumas grandes cidades metropolitanas.

Os preços de varejo estão estáveis ​​enquanto a pureza desta droga está em seu nível mais alto na última década.

Na Europa, existem dois tipos de cocaína: a mais comum é a cocaína em pó (na forma de sais), enquanto o crack (base livre), que é ingerido pela fumaça, é menos disponível.

Historicamente, a maior parte da cocaína chega à Europa através dos portos, em grandes navios porta-contentores, da Península Ibérica, mas apreensões recentes sugerem que esta rota já não é a única.

De fato, em 2016, a Bélgica ultrapassou a Espanha como o país com a maior quantidade de cocaína apreendida nos portos.

COCAÍNA: QUEM USA E COMO?

A cocaína, diferentemente de outras substâncias, é geralmente consumida de forma compulsiva (binge) seguida de períodos de não uso que, do ponto de vista neuroquímico, correspondem a uma forte depleção de neurotransmissores.

A via nasal (cheirar) é preferencialmente utilizada e raramente a via parental.

Recentemente, tornou-se mais comum fumar cocaína em sua forma básica: crack

A cocaína é usada por pessoas de todos os estratos sociais, sem diferenças étnicas, e também há evidências de que as mulheres jovens são mais propensas do que seus pares do sexo masculino a consumir demais.

O uso de cocaína está intimamente relacionado às propriedades farmacológicas da substância, às características do indivíduo e do ambiente.

Essa substância, talvez mais do que qualquer outra droga, tende a ser usada em determinados contextos sociais e por grupos específicos de pessoas.

De fato, está provado que os fatores ambientais são absolutamente cruciais na determinação de uma amplificação do uso.

Ainda precisa ser esclarecida a influência de determinados quadros de personalidade ou como diferentes estruturas de personalidade podem ser mais ou menos vulneráveis ​​ao uso de cocaína.

COMO FUNCIONA A COCAÍNA?

Quanto mais pura a substância, maiores os efeitos clínicos obtidos.

Na prática, porém, a cocaína é sempre adulterada com outros compostos como:

  • manitol;
  • lactose ou glicose para aumentar seu volume;
  • cafeína;
  • lidocaína;
  • anfetamina para amplificar seus efeitos (Bastos, Hoffman, 1976).

A cocaína normalmente vendida contém de 10 a 50 por cento de ingrediente ativo e raramente chega a 70 por cento.

Farmacologicamente, a cocaína é capaz de bloquear a recaptação neuronal de dopamina, noradrenalina e serotonina e aumentar a transmissão glutamatérgica.

EFEITOS CLÍNICOS NO CORPO

Os efeitos clínicos da cocaína são diretamente proporcionais à dose administrada.

Doses entre 25 e 125 mg resultam em quais são os efeitos desejados que consistem em:

  • euforia;
  • aumento da sociabilidade e energia;
  • necessidade reduzida de sono;
  • aumento aparente e temporário na eficiência.

Doses maiores da substância, acima de 150 mg, resultam em:

  • vasoconstrição;
  • aumento da frequência cardíaca e da temperatura;
  • dilatação da pupila do olho na ausência de luz (midríase)
  • se a substância for ingerida por via nasal, anestesia local forte.

Doses superiores a 300 mg podem causar superdosagem mesmo em indivíduos tolerantes com

  • comportamento estereotipado e repetitivo
  • ansiedade;
  • ataques de pânico;
  • paranóia;
  • alucinações;
  • agressão;
  • violência;
  • problemas cardiovasculares como infarto do miocárdio ou angina; arritmias;
  • acidentes neurológicos como tonturas, dores de cabeça, visão turva, isquemia, ataques cardíacos e hemorragias.

Através do aumento da dopamina no cérebro, também é capaz de provocar um aumento na excitação sexual.

A cocaína é normalmente abusada por suas habilidades psicoestimulantes

Deve ser lembrado que o sistema nervoso central não pode ser estimulado artificialmente além de um certo limite porque tende a sofrer exaustão metabólica se superexcitado em um tempo relativamente curto.

De fato, é comum observar após verdadeiras farras fortes sintomas de

  • depressão;
  • falta de motivação;
  • Sonolência;
  • paranóia;
  • irritabilidade e psicose (Gold, Verebey, 1984).

QUANTO TEMPO DURAM OS EFEITOS DA COCAÍNA?

Se administrado por via nasal, a meia-vida – ou seja, o tempo necessário para reduzir pela metade a concentração ou atividade inicial de uma substância – é de cerca de 80 min, 60 min se administrado por via parenteral e 50 min se ingerido.

Os metabólitos detectados na urina persistem por cerca de 1 semana.

A cocaína, como muitas substâncias de abuso, é capaz de induzir tolerância, dependência e abstinência, uma vez que sua administração é interrompida abruptamente.

AS 2 FASES DE RETIRADA

Os sintomas de abstinência induzidos pela cocaína, especialmente em usuários crônicos, são particularmente intensos.

É caracterizada por três fases.

  • A primeira, definida como a fase do crash, que aparece poucos dias após a cessação do uso (1-3 dias) é caracterizada por depressão, dificuldade para dormir e fissura apenas moderada – ou seja, o desejo intenso e incoercível de consumir a substância.
  • A segunda, que aparece 2 a 10 dias após a interrupção, reconhece o pico dos sintomas de abstinência com disforia, falta de energia, aumento do apetite, dor generalizada e dor de cabeça, ansiedade, paranóia, alucinações, delírios, fortes alterações de humor, sonolência e desejo intenso.

A terceira fase aparece após a primeira semana e pode durar até meses e é caracterizada por fissura episódica, insônia, irritabilidade, agitação.

De particular interesse do ponto de vista neurobiológico e clínico é um dos sintomas mais importantes da dependência de cocaína: o desejo.

EFEITOS NO CORAÇÃO

Isquemia e infarto agudo do miocárdio são as patologias mais frequentemente descritas no abuso de cocaína, mas os efeitos dessa substância no sistema cardiovascular são muitos e complexos, podendo levar a um amplo leque de complicações, desde síndromes coronarianas agudas até dissecção aórtica e morte por causas arrítmicas.

O principal mecanismo, mas não o único, é o aumento do nível de catecolaminas circulantes e a estimulação prolongada dos receptores adrenérgicos no coração.

Essa alteração leva a vários efeitos, incluindo aumento da frequência cardíaca, pressão arterial sistêmica e contratilidade das células cardíacas, que levam ao aumento da demanda de oxigênio do miocárdio.

Inversamente, a nível coronário, a cocaína induz vasoconstrição e, consequentemente, redução do fluxo sanguíneo para o músculo cardíaco, levando a um desequilíbrio entre a oferta e a oferta de oxigénio e consequente sofrimento isquémico.

Alterações na coagulação

Além dos efeitos hemodinâmicos, o uso de cocaína também leva a alterações na coagulação no sentido pró-trombótico; há numerosos casos de trombose aguda de infarto do miocárdio relacionados ao uso de cocaína, mesmo na ausência de estenose coronariana significativa.

A cocaína promove trombose por alterar a expressão de moléculas envolvidas na ativação e agregação plaquetária, com ação pró-inflamatória e envolvidas no processo bioquímico da coagulação.

Entre os principais mecanismos pró-trombóticos relacionados ao uso de cocaína está a disfunção endotelial: o endotélio é o 'tecido' que reveste a superfície interna dos vasos sanguíneos e do endocárdio e tem papel fundamental na regulação adequada do tônus ​​vascular (vasodilatação e vasoconstrição) , em processos inflamatórios, aterosclerose e coagulação.

A cocaína, ao alterar a produção pelas células do endotélio de substâncias que regulam todos esses processos, promove a formação de coágulos e acelera o processo de aterosclerose. (3)(4)(8)

O infarto do miocárdio

Indivíduos com angor ou enfarte do miocárdio em curso devido ao abuso de cocaína à data de admissão nos Serviços de Urgência e Emergência podem ser indistinguíveis da população em geral pelas características e duração da dor e pela coexistência de outros factores de risco cardiovascular (tabagismo, história, diabetes, dislipidemia, etc.), embora em média sejam mais jovens do que a média de indivíduos com doença arterial coronariana por outras causas.

No infarto por cocaína, o tempo de início dos sintomas desde a última ingestão da substância varia de 30 minutos a várias horas (às vezes mais de 15 horas após a ingestão), com pico de incidência aproximadamente uma hora após o uso; o aparecimento dos sintomas nem sempre está relacionado com a dose tomada ou o tipo de administração. (3)

Relatos de casos de pacientes viciados em cocaína que desenvolveram um ataque cardíaco agudo mostram que, no estudo angiográfico, podem ser observadas artérias coronárias normais e lesões estenosantes.

Deve-se enfatizar, entretanto, que em pacientes usuários de cocaína observa-se predominantemente um quadro de aterosclerose acentuada e disseminada, apesar da pouca idade e mesmo na ausência de fatores adicionais de risco cardiovascular.

A longo prazo, pode observar-se uma deterioração progressiva da função cardíaca, mesmo na ausência de acontecimentos isquémicos sintomáticos prévios, com redução significativa da 'função da bomba' e desenvolvimento de insuficiência cardíaca crónica.

Esta disfunção cardíaca parece ser o resultado de vários fatores, tais como:

  • isquemia subendocárdica assintomática;
  • exposição recorrente ao excesso de catecolaminas;
  • aumento da apoptose (morte) de miócitos;
  • indução de alterações na estrutura das próprias células cardíacas.

Além do dano isquêmico mediado por catecolaminas ou fenômenos de trombose, a cocaína pode causar dano direto às células miocárdicas por aumentar a produção de espécies reativas de oxigênio envolvidas em processos de estresse oxidativo. (5)

Cocaína e arritmias

O abuso de cocaína também está relacionado a fenômenos arrítmicos de vários graus:

  • taquicardia e/ou bradicardia;
  • aparecimento de distúrbios de condução;
  • taquicardias supraventriculares;
  • taquicardia e fibrilação ventricular;
  • pico de torção;
  • aparecimento de padrões eletrocardiográficos que mimetizam a síndrome de Brugada (síndrome relacionada à morte súbita).

Os mecanismos pelos quais a cocaína exerce seus efeitos pró-arritmogênicos também são múltiplos.

Ao actuar ao nível dos canais iónicos (sódio, potássio, cálcio), pode alterar a normal formação e condução do impulso eléctrico, sendo que o aumento da 'instabilidade' das células cardíacas, induzida pelo estado isquémico, determina um substrato favorável para o aparecimento de arritmias atriais e ventriculares.

Além disso, um quadro de hipertrofia ventricular esquerda é freqüentemente observado em pacientes que fazem uso assiduo de cocaína, fenômeno que, além de estar associado ao infarto, também aumenta o risco de arritmias cardíacas. (6,7)

Inflamação do coração

A ocorrência de endocardite e miocardite não é incomum em dependentes de cocaína, principalmente em usuários intravenosos.

O uso de drogas intravenosas é um fator de risco para a entrada de patógenos na corrente sanguínea, aumentando o risco de doenças infecciosas do tecido cardíaco e valvular, mas pelas estatísticas, a própria cocaína parece ser um fator de risco independente em comparação com outras substâncias intravenosas.

É provável que o aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial sistólica e o quadro de disfunção endotelial possam levar a danos vasculares e valvares que podem favorecer a entrada de patógenos no tecido.

Uma maior incidência de patologias vasculares como flebite e tromboflebite também é observada em dependentes de cocaína.

A incidência de patologias aórticas (dissecção, ruptura) e acidentes vasculares cerebrais (tanto isquêmicos quanto hemorrágicos) também é estatisticamente maior em dependentes de cocaína do que na população em geral.

COCAÍNA, FUMO E ÁLCOOL

Todos os efeitos cardiovasculares da cocaína são amplificados em indivíduos cujo abuso de cocaína é combinado com o tabagismo.

O uso concomitante de álcool também amplifica os efeitos da cocaína, por retardar sua depuração e pela formação de cocaetileno, um éster metílico estruturalmente semelhante à cocaína e com atividade biológica em neurônios dopaminérgicos semelhantes à cocaína, que se forma no fígado quando a cocaína e álcool etílico estão em circulação ao mesmo tempo.

TRATAMENTO DO TRANSTORNO POR USO DE COCAÍNA

Com base nas teorias existentes sobre o vício, uma ampla gama de tratamentos para o transtorno do uso de cocaína foi desenvolvida.

A dependência de cocaína oferece menos disponibilidade de protocolos farmacológicos eficazes, de modo que a intervenção psicoterapêutica, e em particular a intervenção cognitivo-comportamental, assume um papel fundamental.

Este modelo de psicoterapia tem possibilitado a estruturação de tratamentos que mais frequentemente do que outros têm sido submetidos à comprovação científica de eficácia.

Na abordagem comportamental, os objetivos e ações terapêuticas são articulados de acordo com as características únicas do indivíduo, ambiente familiar, relacional e de trabalho, fase do tratamento e tratamentos farmacológicos concomitantes.

Em comparação com outros modelos de psicoterapia, as abordagens cognitivo-comportamentais colocam ênfase especial na correspondência das necessidades de uma pessoa com os objetivos a serem alcançados.

Além disso, a terapia é organizada de acordo com etapas de tratamento de curto prazo, com objetivos que são acordados com o paciente de tempos em tempos.

Dentre elas, a primeira, em ordem cronológica, é a conquista gradual da abstinência, principalmente quando se evidenciam graves riscos à saúde.

O primeiro passo nas terapias comportamentais, no entanto, visa desenvolver uma boa aliança terapêutica para aumentar a adesão da pessoa também a quaisquer tratamentos farmacológicos que possam ser necessários.

Uma vez alcançada a aliança terapêutica, o clima de confiança criado facilitará a contenção inicial do comportamento abusivo.

O próximo passo será então o trabalho terapêutico visando aumentar a motivação da pessoa para a mudança no sentido de alcançar progressivamente a abstinência.

Poder enxergar escolhas diferentes das feitas até então e aprender a persegui-las.

A mudança no comportamento relacionado ao vício deve, portanto, ser entendida como um processo, e não como um evento, e a motivação não pode ser considerada totalmente presente ou totalmente ausente.

ANÁLISE FUNCIONAL DO COMPORTAMENTO DE CONSUMO

Outra etapa terapêutica importante é a análise funcional do comportamento de consumo e dos fatores que o desencadeiam e o mantêm ao longo do tempo.

Trata-se de uma avaliação aprofundada que visa identificar tanto os estímulos que o indivíduo aprendeu a associar às substâncias quanto os fatores de proteção que precisam ser potencializados.

A informação que emerge desta análise funcional permitirá então preparar protocolos de 'treino' destinados a apoiar os indivíduos quando o consumo de substâncias se tornou, para eles, ao longo do tempo, o modo único e generalizado de resposta a estados emocionais internos, situações estressantes ou contextos relacionais particulares.

O reconhecimento precoce de situações de uso de alto risco ou situações que desencadeiam 'memórias' de uso é um importante objetivo terapêutico para o usuário de cocaína.

O indivíduo que já alcançou a cessação do uso deve então ser auxiliado pela equipe terapêutica para evitar situações de alto risco, implementar estratégias de autocontrole e escolher comportamentos alternativos ao uso de substâncias.

Dada a centralidade que a substância tende a desempenhar na vida do usuário, um objetivo importante é estimular o desenvolvimento de atividades alternativas ao comportamento de consumo que sejam satisfatórias para a pessoa.

Isso é alcançado através do estabelecimento de um clima de trabalho altamente colaborativo entre a equipe de tratamento e o paciente.

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Auxiológico

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